Por Zulmir Breda, presidente do CFC
Importante marco regulatório da contabilidade pública brasileira, a Lei de Responsabilidade Fiscal (LRF) (Lei Complementar nº 101, de 4 de maio de 2000) completou 20 anos de vigência no início do mês de maio. Esse fato nos leva a refletir sobre sua importância histórica durante essas duas décadas, desde aquele Brasil da virada do século, com sua luta contra o desarranjo das contas públicas, à atual flexibilização da aplicação da Lei, diante do quadro de grave crise econômica provocada pela pandemia de Covid-19.
Antes de a Lei de Responsabilidade Fiscal trazer regras mais rígidas para as contas fiscais, em todos os níveis de governo, impondo o cumprimento de metas e atribuindo mais responsabilidades aos gestores, a principal legislação do País sobre contas públicas era a Lei nº 4.320/1964, que fixa as bases e definições para o funcionamento das finanças governamentais.
A Lei Complementar nº 101/2000 foi aprovada pelo Congresso Nacional, após meses de negociação, e sancionada pelo então presidente da República, Fernando Henrique Cardoso, com a finalidade de substituir um prolongado desarranjo fiscal por um novo modelo de finanças públicas. Especialistas na área afirmam que, assim como a Lei nº 4.320/1964, a LRF representou um “ponto de inflexão” no desequilíbrio das finanças públicas no Brasil.
Durante o ato de sanção da LRF, Fernando Henrique Cardoso disse que a nova Lei representava uma "mudança de mentalidade, de práticas e de valores" e que ela era “um sinal de novos tempos". Mas, passados 20 anos do início da vigência da Lei, há quem diga que o Brasil ainda não conseguiu consolidar totalmente a importância da responsabilidade fiscal entre os gestores públicos.
Controvérsias à parte, o fato é que a Lei Complementar n º 101 trouxe regulamentação ao Art. 163 da Constituição Federal (CF) de 1988, estabelecendo normas gerais de finanças públicas para os três níveis de Governo: Federal, Estadual e Municipal. Outros artigos da CF – a exemplo do Art. 169, que determina o estabelecimento de limites para as despesas com pessoal ativo e inativo da União, dos estados, do Distrito Federal e dos municípios – também foram abrangidos pela LRF. Ainda, cabe destaque ao Art. 165 (Dos Orçamentos) da Carta Magna, que, no inciso II do parágrafo 9º, traz: “...Cabe à Lei Complementar estabelecer normas de gestão financeira e patrimonial da administração direta e indireta, bem como condições para a instituição e funcionamento de Fundos”.
São vários e inegáveis os avanços trazidos pela LRF no sentido de disciplinar a gestão dos recursos e de limitar a ação dos gestores; de dar transparência à sociedade sobre os assuntos fiscais da administração pública, por meio emissão de relatórios e da divulgação anual das contas; e de estimular o controle social do orçamento público em seus vários níveis.
A defesa dos cidadãos, inclusive, está na base do que poderíamos chamar de cultura da responsabilidade fiscal, que se caracteriza pela adoção de práticas, por parte da administração pública, que busquem a solidez, o equilíbrio e a sustentabilidade das contas públicas, com ações planejadas e transparentes e ampla publicidade dos atos ligados à arrecadação de receitas e à realização de despesas.
A Lei de Responsabilidade Fiscal atribuiu novas funções à contabilidade pública, conferindo-lhe um caráter mais gerencial, com o controle orçamentário e financeiro. De modo geral, a contabilidade ganhou relevância com a LRF, e isso me faz lembrar das sábias palavras de um grande mestre, o saudoso professor Antônio Lopes de Sá, que disse certa vez: “Só não entende o valor da Contabilidade quem não possui cultura atualizada para compreender que é esta a ciência que pode ensejar modelos e comportamento da riqueza”.
A “mudança de mentalidade” trazida pela vigência da LRF foi tão relevante para a contabilidade brasileira, que se seguiram outros importantes passos regulatórios, no sentido de consolidar o caráter imprescindível das informações dos demonstrativos contábeis para o desenvolvimento econômico. Alguns exemplos são a Lei nº 11.638/2007, que abriu as portas para a convergência das normas contábeis ao padrão internacional (IFRS); e a Portaria do Ministério da Fazenda nº 184/2008, que regulamentou diretrizes a serem observadas no setor público para tornar as demonstrações contábeis convergentes com as Normas Internacionais de Contabilidade Aplicadas ao Setor Público (Ipsas).
Por 20 anos, a vigência da Lei Complementar nº 101/2000 afastou os temores iniciais de poderia haver incompatibilidade entre responsabilidade fiscal e responsabilidade social. “O fato de a legislação não ser perfeita não significa que não deva ser adotada e, com o tempo, melhorada. O Brasil já não suporta mais ser corroído pela gastança irresponsável e pela corrupção desenfreada”, publicou em editorial, em 13 de abril de 2000, o jornal Folha de S.Paulo.
Embora imperfeita – alguns artigos foram considerados inconstitucionais e outros, ignorados por gestores públicos –, a Lei de Responsabilidade Fiscal trouxe válvulas de escape que permitiriam a sua flexibilização, em situações de calamidade pública e com o Produto Interno Bruto (PIB) crescendo abaixo de 1%. Diante do colapso econômico provocado pela imprevisível pandemia de Covid-19, essas válvulas foram acionadas e confirmadas pelo Supremo Tribunal Federal (STF), primeiro em decisão liminar do ministro Alexandre de Moraes, em 29 de março de 2020, depois referendada pelo Plenário do STF, no dia 13 de maio.
Na situação atual, a flexibilização das regras impostas pela Lei, para a adoção de medidas urgentes de enfrentamento à calamidade na saúde pública, é uma atitude necessária e sensata. É como se vivêssemos uma guerra e todas as armas disponíveis precisassem ser usadas para minimizar os danos à população.
Porém, no horizonte pós-pandemia – hoje ainda difícil de ser estimado – a responsabilidade fiscal será mais necessária do que nunca. A projeção da Secretaria do Tesouro Nacional (STN), considerando a forte queda do PIB, aliada ao aumento inevitável, ainda que temporário, do déficit nas contas públicas brasileiras, que pode chegar 9% do PIB em 2020, é que o endividamento público ultrapasse 90% do PIB.
Em meio às sérias batalhas que estamos hoje enfrentando para combater a tragédia humana provocada pela pandemia de Covid-19, proponho uma reflexão sobre uma fala do economista John Maynard Keynes, proferida em fevereiro de 1943, ao Parlamento britânico: “O futuro será o que escolhermos para fazê-lo. Se o abordamos com medo e timidez, teremos o que merecemos. Se marcharmos com confiança e vigor, os fatos responderão. Seria uma coisa monstruosa reservar toda nossa coragem e força de vontade para a Guerra e então, coroados com a vitória, abordarmos a Paz como um bando de derrotistas falidos.” (KEYNES, 1982, p. 260, tradução livre).
No que depender da área contábil, coragem e força de vontade estarão, a qualquer tempo, ao lado da seriedade, da integridade e da responsabilidade fiscal – e social.
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