Uma reflexão sobre os 30 anos da “Constituição Cidadã”

Artigo -
Zulmir  Ivânio Breda
Presidente do CFC

Ao percorrermos a história do Brasil, percebemos que, antes da Constituição Federal em vigor, existiram outras seis Constituições, umas com durabilidade breve e outras com maior tempo de duração. A de maior longevidade, por exemplo, foi a primeira, instituída em 1824, que esteve em vigor por mais de 65 anos. Na época, Dom Pedro I, primeiro Imperador do Brasil, apoiado pelo partido português – ricos comerciantes e altos funcionários públicos –, dissolveu a Assembleia Constituinte brasileira e impôs seu próprio projeto, que se tornou nossa primeira constituição, outorgada em 25 de março de 1824.

Os contextos social, econômico e político do Brasil de cada época, desde a proclamação da independência até a atualidade, estão refletidos nas linhas mestras de nossas Cartas Magnas. A sétima Constituição Brasileira, hoje em vigor, foi promulgada em 5 de outubro de 1988 após 20 meses de intenso debate envolvendo representantes da sociedade civil, especialistas jurídicos e o Congresso Nacional. Sua promulgação marcou o processo de redemocratização brasileira após 21 anos de regime militar e se diferencia das Constituições anteriores justamente por tratar de direitos e garantias fundamentais.

Notemos, contudo, algumas peculiaridades da Constituição brasileira. Traçando um quadro comparativo, enquanto o Brasil teve sete Constituições, sendo que a última está em vigor desde 1988, possuindo 250 artigos e 99 emendas constitucionais (Dez./2017), os Estados Unidos, por exemplo, tiveram uma única Constituição Federal em toda sua história, que está em vigor desde 1789 e possui apenas 7 artigos e 27 emendas. É considerada a segunda Constituição em vigor mais antiga do mundo, ficando atrás apenas da Constituição da República de San Marino, em vigor desde outubro de 1600.

Cabe salientar que, a Carta Magna dos EUA foca no âmbito estritamente constitucional de forma enxuta, abordando a forma de organização do Estado, a divisão de poderes, as normas limitadoras para os governantes, a divisão de competências, os principais órgãos governamentais e direitos fundamentais dos cidadãos, prezando especialmente por seus direitos individuais. Já a Constituição do Brasil é extensa e analítica, com um cunho muitas vezes burocrático, complexo e que contribui para um quadro de regulamentação excessiva.  Isso se confirma e se justifica quando verificamos que, de acordo com Instituto Brasileiro de Planejamento e Tributação (IBPT), desde 5 de outubro de 1988 até 30 de setembro de 2016, foram editadas mais de 5,4 milhões de normas que regem a vida dos cidadãos brasileiros. Isto representa, em média, 535 normas editadas todos os dias e mostra a fragilidade e a complexidade da legislação brasileira.

Ao comemorarmos os 30 anos de vigência da Constituição Federal do Brasil, podemos seguir nossa reflexão por dois vieses de análise. Primeiro, o fato de que realmente ela representou um grande avanço em direção à cidadania e à construção de um efetivo estado democrático de direito, pois é a Constituição de 88 que abre espaço para a sociedade civil organizada, dando-lhe voz e ação. Segundo, o fato de que essa mesma Constituição, ao assegurar diversos direitos e garantias individuais e coletivas, não cuidou de especificar como o País teria asseguradas as condições econômicas para atender a tantas garantias sociais ofertadas ao povo.

Batizada de “Constituição Cidadã”, pelo então Presidente da Assembleia Nacional Constituinte, Ulysses Guimarães, o documento deixa evidente, desde o Preâmbulo, sua autenticidade democrática, ao mencionar que foi elaborada e promulgada por representantes do povo. Os primeiros artigos consagram os princípios da democracia representativa e definem o Legislativo, o Executivo e o Judiciário como os Poderes da União, referindo-se ao Estado brasileiro como um Estado democrático de direito. Essa foi a primeira vez que uma Constituição citou um tipo determinado de Estado.

Tendo por base o ideal de igualdade, a nova Carta Magna trouxe a todos os brasileiros a igualdade perante a lei e o direito à vida, à liberdade, à segurança e à propriedade. Entre os princípios fundamentais, estão a cidadania e a dignidade da pessoa humana. A Lei Maior garantiu ainda o acesso universal à educação, à saúde e à cultura.

Por exemplo, a educação passou a ser considerada um dever do Estado. Na saúde, foi criado o Sistema Único de Saúde (SUS) com a finalidade de alterar a situação de desigualdade na assistência à saúde da população, tornando obrigatório o atendimento público a qualquer cidadão.

A atual Constituição estabeleceu ainda um número maior de direitos trabalhistas e o direito do consumidor também foi reconhecido. Os cidadãos – mesmo não alfabetizados – e os jovens, a partir de 16 anos, também passaram a votar e a ajudar a decidir o futuro da nação. Ela trouxe ainda novas conquistas no tocante aos direitos humanos.

Como podemos constatar, os avanços quanto à conquista de direitos e de cidadania são evidentes e inquestionáveis, entretanto, o que se observa hoje é que as garantias sociais trazidas pela Constituição não foram acompanhadas pelo desenvolvimento econômico e pela geração de riqueza, necessários para sustentar esse patamar de conquistas.

 Princípio elementar na formulação de políticas públicas é que, ao se estabelecer um determinado conjunto de direitos aos cidadãos, com reflexos econômicos, é necessário, também, que sejam previstas as fontes de recursos que sustentarão, ao longo do tempo, esses direitos. Caso isso não ocorra, os benefícios tendem a se multiplicar sem a devida contrapartida em capacidade produtiva e geração de riqueza e o Estado acaba por assumir um papel paternalista, endividando-se para sustentar tais benefícios.

Quanto maior o volume de serviços/benefícios a serem ofertados pelo Estado maior será a estrutura que este precisará para o atendimento desses serviços e isto exigirá cargas tributárias e controles cada vez maiores, comprometendo a competitividade da economia e a consequente produção de riqueza e o desenvolvimento econômico do País.

E, mesmo com uma alta carga tributária, o caso brasileiro é peculiar. Como muitas vezes os recursos não chegam ao seu destino, por mau gerenciamento, desvios e corrupção, grande parte dos serviços públicos apresenta baixa qualidade. As áreas mais fragilizadas são as da saúde, educação e segurança, que trazem desalento a maior parte da população, dita munida de tantas garantias e direitos.

Citando algumas estatísticas, em janeiro de 2018, o Brasil contava com 2,18 médicos por mil habitantes, sendo que o número recomendável pelo Ministério da Saúde é de pelo menos 2,5. Sem contar que, nas regiões Norte e Nordeste esse número chegava a 1,16 e 1,41, respectivamente.

Na educação, o Sistema de Avaliação da Educação Básica (Saeb) 2017 mostrou que apenas 1,62% e 4,52% dos estudantes da última série do Ensino Médio alcançaram níveis de aprendizagem classificados como adequados em Língua Portuguesa e Matemática, respectivamente. Esse fato mostra a debilidade do Estado em oferecer uma educação de qualidade.

No tocante a segurança, a taxa de homicídios por 100 mil habitantes chegou a 31,3 em 2016, sendo a sétima maior taxa da região das Américas, segundo a Organização Mundial da Saúde (OMS).

Temos assim alguns exemplos da ambiguidade brasileira. De um lado, os artigos de nossa Constituição que enunciaram um País ideal a ser alcançado em um futuro ainda distante e, de outro lado, o Brasil real em que vivemos, afastado daquele imaginado pelos nossos constituintes.

É bem verdade que muitos dos direitos assegurados pela Constituição atual foram implementados, como o direito ao voto dos não alfabetizados e dos jovens, a partir dos 16 anos, posto que o custo da sua implementação foi razoavelmente pequeno. Entretanto, os direitos mais relevantes para o cidadão, como saúde, educação e segurança pública, este último muito debatido atualmente, estão longe de serem considerados satisfatórios.

Enfim, precisamos recordar que nossa Lei Maior se constituiu de um laborioso texto, que se encontra dividido em vários títulos e acrescido de muitas emendas. Se suas disposições serão utopias ou se servirão de norte para a sociedade seguir buscando seus direitos e sua evolução cidadã, ao mesmo tempo que cumpre seus deveres e exige de seus representantes a transparência e a responsabilidade que lhes cabem, vai depender da postura que cada um de nós assume ou pode vir a assumir. Ao contrário do que se prega, boa parte do que precisa ser feito depende somente de nós.

E, neste aspecto, passados trinta anos da Constituição Cidadã, o que se observa é que precisamos evoluir muito naquilo que é fundamental para o desenvolvimento de uma nação – a virtude do seu povo –, ou seja, a disposição firme e constante para a prática moral do cidadão, capaz de impulsioná-lo ao pleno exercício da cidadania, que implica primeiro o cumprimento dos deveres e depois o exercício dos seus direitos. O presidente norte-americano, Thomas Woodrow Wilson, que presidiu aquele país de 1913 a 1921, já dizia “Em governo, como em virtude, a mais difícil das coisas difíceis é progredir.”.

Que, nos próximos trinta anos, possamos efetivamente tornar a nossa Constituição “cidadã”, na prática, através da virtude do nosso povo.

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